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O português que usa tecnologia para combater a fome

  • Writer: Pedro Matos
    Pedro Matos
  • May 6, 2024
  • 5 min read

Updated: Aug 17

24 Outubro 2020 | Filipa Lino | Jornal de Negócios


As pessoas, em geral, conhecem mal o trabalho do Programa Alimentar Mundial, afirma Pedro Matos, um dos poucos portugueses que trabalham na organização distinguida este ano com o Prémio Nobel da Paz. O engenheiro é coordenador de operações de emergência e está atualmente no Sudão. A imagem que impera é a dos sacos de comida a serem atirados de avião para populações famintas. Mas isso é só uma parte da atividade da agência humanitária da ONU, esclarece. Existe hoje uma aposta na inovação tecnológica para combater a fome.


Entrega de alimentos e abrigo através de helicóptero às pessoas afetadas pelo Ciclone Idai em Moçambique, 2019. Foto: Johnny Shipley
Entrega de alimentos e abrigo através de helicóptero às pessoas afetadas pelo Ciclone Idai em Moçambique, 2019. Foto: Johnny Shipley

Pedro Matos tinha acabado de chegar ao Sudão quando recebeu a notícia de que o Programa Alimentar Mundial (com a sigla em inglês WFP) tinha ganho o Prémio Nobel da Paz de 2020. O engenheiro português, de 47 anos, trabalha há 12 na agência da ONU que presta assistência alimentar a cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo.


Formado em Engenharia do Território no Técnico, deixou para trás uma carreira na área espacial. “Eu monitorizava, através de imagens de satélite, zonas de risco e de crise – como os campos de refugiados no Ruanda ou a guerra na Bósnia –, e a resolução das imagens não me permitia ver as pessoas. Isso fez-me confusão e comecei a querer trabalhar mais de perto sobre as operações que via através do satélite”, conta, numa entrevista ao Negócios por WhatsApp. É um dos poucos portugueses a trabalhar na agência.


Esta mudança profissional fê-lo descer do céu à terra. Literalmente. Ao longo destes anos, tem sido coordenador de operações de emergência. Já passou por Moçambique, Mali, Iémen, Quénia, Uganda e Bangladesh. Agora está de volta ao lugar onde começou a sua carreira humanitária. Chegou ao Darfur em 2009, onde ficou quatro anos. Por isso, conhece bem o terreno que está a pisar. O Sudão vive em constante instabilidade. O WFP alimenta seis milhões de pessoas no país. “Cheguei agora para implementar os mecanismos de controlo à ajuda que prestamos”, explica. Isso passa por tornar as operações mais digitais.


Para muitas pessoas, a função da maior agência humanitária do mundo é “atirar” sacos de comida de avião para as populações famintas. Mas já não é bem assim, garante Pedro Matos. Atualmente, “30% das nossas operações são feitas por transferências monetárias”, afirma. Isso é feito através de “vouchers” ou cupões que podem ser usados nos mercados locais, quando estes funcionam. Depois, a WFP acerta as contas com os comerciantes. No Sudão, por exemplo, a inflação já está nos 200%, “por isso só podemos transferir dinheiro nas zonas onde há disponibilidade de comida nos mercados e esta não aumenta de preço de um mês para o outro”.


A utilização deste método para fazer chegar alimentos tem também como objetivo ajudar os produtores locais. “Há cerca de 15 anos, demos conta de que muitas das grandes operações humanitárias, em que trazíamos comida de fora, estavam a impedir os agricultores de voltarem ao mercado, porque tínhamos uma dimensão demasiado grande. Foi por isso que fizemos esta mudança, no sentido de usar mercados locais para as soluções de alimentação das pessoas”, explica.


Outra das lições aprendidas foi ao nível político. “No início das operações humanitárias, as Nações Unidas chegavam e substituíam- se aos governos. Agora, em todos os países onde estamos, apoiamos e complementamos o trabalho dos governos.” As análises de segurança alimentar são feitas em conjunto com as autoridades. Essas avaliações, que têm uma escala de gravidade segundo a situação encontrada, determinam o tipo de atuação que a WFP terá no terreno.


OITO ANOS À ESPERA

A entrada de Pedro Matos nos quadros da WFP não foi fácil. Só ao fim de oito anos, depois de várias tentativas para ser contratado pela maior agência humanitária do mundo, é que conseguiu finalmente integrar a organização. Percebeu que tinha cometido um erro nas candidaturas prévias: as mensagens que transmitia falavam sobre a sua motivação, mas na realidade o que importa no trabalho humanitário são as competências de cada um, diz. Como em qualquer outro emprego. “Não passamos de engenheiros ou logísticos para humanitários e começamos do zero. Temos ‘skills’ que transferimos para dentro do mundo humanitário.” Até porque não se trata de ser missionário. Esta é “uma grande máquina com profissões lá dentro”. É um emprego com um salário ao fim do mês. E não há heróis. “Não vamos ao encontro do perigo. Ponderamos se vale a pena, ou não. Há alturas em que decidimos mesmo não avançar. Quando perdemos colegas no Sul da Somália, parámos as operações, não tínhamos condições para continuar”, sublinha.


A pandemia veio agravar as carências alimentares e de recursos humanos no combate à fome. “O número de pessoas em insegurança alimentar grave, com a covid-19, passou de 130 milhões para 270 milhões em todo o mundo”, salienta. Este fenómeno “faz com que precisemos de muito mais dinheiro dos doadores”. Os grandes financiadores da WFP são os Estados Unidos, principalmente nas operações de emergência, e a União Europeia, (que atua) mais na área do desenvolvimento e em causas da insegurança alimentar. Mas também há privados a abrir os cordões à bolsa, como as fundações Cartier e Aga Khan. “Há privados que entram com dinheiro, outros com conhecimento. A Google, por exemplo, ajuda-nos a ter operações mais eficientes e a fazer análise de dados”, refere.


A covid-19 desestabilizou as equipas no terreno. “Normalmente, quando se verifica um aumento das necessidades num país, mandamos vir colegas para nos ajudarem. Só que, com as restrições das viagens no mundo, parou tudo. Pessoas que estão em zonas mais difíceis, de guerra e de insegurança, e que normalmente têm de ser ‘rodadas’ ao fim de um par de meses, deixaram de poder ser substituídas, e isso afetou-as psicologicamente.” A infeção também chegou aos quadros da WFP. Seis humanitários morreram com covid-19.


O Prémio Nobel da Paz veio dar mais visibilidade ao Programa Alimentar Mundial, acredita Pedro Matos. “Há uma série de agências das Nações Unidas – como a Unicef, o ACNUR ou a FAO – que têm uma personalidade já estabelecida. Nós não temos muito isso. As pessoas que já ouviram falar sobre nós acham que simplesmente andamos a ‘despejar’ comida.” Isso não corresponde à realidade, afirma. A WFP tem vários projetos que combatem as causas da insegurança alimentar: construção de reservatórios de água, canais de irrigação, plantações, entre outras iniciativas. Em Moçambique, as pessoas são incentivadas a plantar canaviais junto ao litoral, em troca de comida, para que a costa esteja mais protegida perante um ciclone, exemplifica. “Trabalhamos muito em projetos que permitem reduzir a severidade dos choques climáticos.” Algumas dessas iniciativas apostam na tecnologia. “Temos um acelerador de inovação dentro do WFP. Investimos em soluções tecnológicas, como hidropónicos ou ‘drones’, que ajudam a resolver os problemas da fome no mundo.”


Este holofote que a WFP tem agora sobre si, por causa da distinção da academia sueca, “permite-nos falar no quão importante é investir no combate às causas da insegurança alimentar” porque, muitas vezes, este problema cria as condições favoráveis ao crescimento de grupos terroristas e às migrações para a Europa.


“Ninguém quer sair do seu país, por muito melhores que sejam as condições de vida noutro sítio. Só empurradas até ao desespero é que as pessoas deixam as suas famílias e entram numa aventura tão perigosa”, diz Pedro Matos, referindo-se aos migrantes que vêm de barco até à costa europeia. E, recorda, “investir na prevenção de emergências é muito mais barato do que responder a essas situações”


 
 
 

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